Terça-feira, 27 de Dezembro de 2011

Devia morrer-se de outra maneira

 XLIII

(Na morte de Manuela Porto)

 

Devia morrer-se de outra maneira.

Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.

Ou em nuvens.

Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol

a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos

os amigos mais íntimos com um cartão de convite

para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica

a V. Exa. que vai transformar-se em nuvem hoje

às 9 horas. Traje de passeio".

E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos

escuros, olhos de lua de cerimônia, viríamos todos assistir

a despedida.

Apertos de mãos quentes. Ternura de calafrio.

"Adeus! Adeus!"

E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,

numa lassidão de arrancar raízes...

(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )

a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se

em fumo... tão leve... tão sutil... tão pòlen...

como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono

ainda tocada por um vento de lábios azuis...

 

José Gomes Ferreira

Em Cinzas, 1961



publicado por acmatos às 20:18

MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA

 

Mãe

 

Mãe, eu quero ir-me embora – a vida não é nada

daquilo que disseste quando os meus seios começaram

a crescer. O amor foi tão parco, a solidão tão grande,

murcharam tão depressa as rosas que me deram –

se é que me deram flores, já não tenho a certeza, mas tu

deves lembrar-te porque disseste que isso ia acontecer.

 

Mãe, eu quero ir-me embora – os meus sonhos estão

cheios de pedras e de terra; e, quando fecho os olhos,

só vejo uns olhos parados no meu rosto e nada mais

que a escuridão por cima. Ainda por cima, matei todos

os sonhos que tiveste para mim – tenho a casa vazia,

deitei-me com mais homens do que aqueles que amei

e o que amei de verdade nunca acordou comigo.

 

Mãe, eu quero ir-me embora – nenhum sorriso abre

caminho no meu rosto e os beijos azedam na minha boca.

Tu sabes que não gosto de deixar-te sozinha, mas desta vez

não chames pelo meu nome, não me peças que fique –

as lágrimas impedem-me de caminhar e eu tenho de ir-me

embora, tu sabes, a tinta com que escrevo é o sangue

de uma ferida que se foi encostando ao meu peito como

uma cama se afeiçoa a um corpo que vai vendo crescer.

 

Mãe, eu vou-me embora – esperei a vida inteira por quem

nunca me amou e perdi tudo, até o medo de morrer. A esta

hora as ruas estão desertas e as janelas convidam à viagem.

Para ficar, bastava-me uma voz que me chamasse, mas

essa voz, tu sabes, não é a tua – a última canção sobre

o meu corpo já foi há muito tempo e desde então os dias

foram sempre tão compridos, e o amor tão parco, e a solidão

tão grande, e as rosas que disseste um dia que chegariam

virão já amanhã, mas desta vez, tu sabes, não as verei murchar.

 

Maria do Rosário Pedreira

Em O Canto do Vento nos Ciprestes, 2001

Blog pessoal

 

ALMADA NEGREIROS

 

Mãe! Passa a tua mão pela minha cabeça!

Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens! Eu vou viajar. Tenho sede! Eu prometo saber viajar!

Quando voltar, é para subir os degraus da tua casa, um por um. Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me a teu lado. Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.

Mãe! Ata as tuas mãos às minhas e dá um nó cego muito apertado! Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa. Eu também quero ter um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.

Mãe! Passa a tua mão pela minha cabeça!

Quando passas a tua mão na minha cabeça, é tudo tão verdade!

 

Almada Negreiros

Em A Invenção do Dia Claro, 1921

 

 

EUGÉNIO DE ANDRADE

 

Poema à Mãe

 

No mais fundo de ti,

eu sei que traí, mãe!

 

Tudo porque já não sou

o retrato adormecido

no fundo dos teus olhos!

 

Tudo porque tu ignoras

que há leitos onde o frio não se demora

e noites rumorosas de águas matinais!

 

Por isso, às vezes, as palavras que te digo

são duras, mãe,

e o nosso amor é infeliz.

 

Tudo porque perdi as rosas brancas

que apertava junto ao coração

no retrato da moldura!

 

Se soubesses como ainda amo as rosas,

talvez não enchesses as horas de pesadelos...

 

Mas tu esqueceste muita coisa!

Esqueceste que as minhas pernas cresceram,

que todo o meu corpo cresceu,

e até o meu coração

ficou enorme, mãe!

 

Olha - queres ouvir-me? -,

às vezes ainda sou o menino

que adormeceu nos teus olhos;

 

ainda aperto contra o coração

rosas tão brancas

como as que tens na moldura;

 

ainda oiço a tua voz:

    Era uma vez uma princesa

    no meio de um laranjal...

 

Mas - tu sabes! - a noite é enorme

e todo o meu corpo cresceu...

 

Eu saí da moldura,

dei às aves os meus olhos a beber.

 

Não me esqueci de nada, mãe.

Guardo a tua voz dentro de mim.

E deixo-te as rosas...

 

Eugénio de Andrade

Em Os Amantes Sem Dinheiro, 1950



publicado por acmatos às 20:13

A Família

 

Vamos à pesca

disse o pai

para os três filhos

vamos à pesca do esturjão

nada melhor do que pescar

para conservar

a união familiar

a mãe deu-lhe razão

e preparou

sem mais detença

um bom farnel

sopa de couves com feijão

para ir também

à pescaria do esturjão

e a mãe e o pai

e os três filhos

foram à pesca

do esturjão

todos atentos

satisfeitíssimos

que bom pescar

o esturjão!

que bom comer

o belo farnel

sopa de couves com feijão!

e foi então

que apanharam

um magnífico esturjão

que logo quiseram

ali fritar

mas enganaram-se na fritada

e zás fritaram o velho pai

apetitoso

muito melhor

mais saboroso

do que o esturjão

 

vamos para casa

disse o esturjão.

 

Mário-Henrique Leiria



publicado por acmatos às 18:33

Liberdade

 

Ai que prazer

Não cumprir um dever,

Ter um livro para ler

E não fazer!

 

Ler é maçada,

Estudar é nada.

Sol doira

Sem literatura

O rio corre, bem ou mal,

Sem edição original.

E a brisa, essa,

De tão naturalmente matinal,

Como o tempo não tem pressa...

 

Livros são papéis pintados com tinta.

Estudar é uma coisa em que está indistinta

A distinção entre nada e coisa nenhuma.

 

Quanto é melhor, quanto há bruma,

Esperar por D.Sebastião,

Quer venha ou não!

 

Grande é a poesia, a bondade e as danças...

Mas o melhor do mundo são as crianças,

 

Flores, música, o luar, e o sol, que peca

Só quando, em vez de criar, seca.

 

Mais que isto

É Jesus Cristo,

Que não sabia nada de finanças

Nem consta que tivesse biblioteca...

 

Fernando Pessoa

em Cancioneiro



publicado por acmatos às 18:30

Pastelaria

 

Afinal o que importa não é a literatura

nem a crítica de arte nem a câmara escura

 

Afinal o que importa não é bem o negócio

nem o ter dinheiro ao lado de ter horas de ócio

 

Afinal o que importa não é ser novo e galante

- ele há tanta maneira de compor uma estante

 

Afinal o que importa é não ter medo: fechar os olhos frente ao precipício

e cair verticalmente no vício

 

Não é verdade rapaz? E amanhã há bola

antes de haver cinema madame blanche e parola

 

Que afinal o que importa não é haver gente com fome

porque assim como assim ainda há muita genteque come

 

Que afinal o que importa é não ter medo

de chamar o gerente e dizer muito alto ao pé de muita gente:

Gerente! Este leite está azedo!

 

Que afinal o que importa é pôr ao alto a gola do peludo

à saída da pastelaria, e lá fora – ah, lá fora! – rir de tudo

 

No riso admirável de quem sabe e gosta

ter lavados e muitos dentes brancos à mostra

 

Mário Cesariny

Em Dircurso Sobre a Reabilitação do Real Quotidiano, 1952



publicado por acmatos às 18:24

Venham mais cinco

Venham mais cinco

Duma assentada

Que eu pago já

Do branco ou tinto

Se o velho estica

Eu fico por cá

 

Se tem má pinta

Dá-lhe um apito

E põe-no a andar

De espada à cinta

Já crê que é rei

 

Dàquém e Dàlém Mar

Não me obriguem

A vir para a rua

Gritar

Que é já tempo

D'embalar a trouxa

E zarpar

 

A gente ajuda

Havemos de ser mais

Eu bem sei

Mas há quem queira

Deitar abaixo

O que eu levantei

 

A bucha é dura

Mais dura é a razão

Que a sustem

Só nesta rusga

Não há lugar

Pr'ós filhos da mãe

 

Não me obriguem

A vir para a rua

Gritar

Que é já tempo

D'embalar a trouxa

E zarpar

 

Bem me diziam

Bem me avisavam

Como era a lei

Na minha terra

Quem trepa

No coqueiro

É o rei

 

José Afonso

em Venham mais Cinco, álbum de canções originais de José Afonso, editado em 1973.



publicado por acmatos às 18:17
Projecto "Em Cena". Direcção e Dramaturgia - Pedro Lamares. Interpretação - Alunos da Academia de Música Fernandes Fão. No Teatro Diogo Bernardes, em Ponte de Lima. 28, 29 e 30 de Dezembro de 2011.
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